Por Jairo Máximo
Madri, Espanha – (Blog do Pícaro) – No dia 1 de abril de 2013 publiquei o primeiro texto no Blog do Pícaro: “¡Manifestaciones a la vista!”. Sendo assim, dezenas de trabalhos jornalísticos publicados anteriormente ficaram fora porque nasceram antes do parto. Quando acesso ao blog para publicar um texto −novo ou velho?− e encontro a frase: “Yo no busco pura información, me interesan las ideas, el pensamiento”, de Ryszard Kapuściński, lembro que esta é a “carta de intenção» do Blog do Pícaro. Em 2007 publiquei no Brasil e na Espanha um perfil do repórter, historiador e escritor polonês Ryszard Kapuściński (1932-2007), um dos grandes mestres do jornalismo contemporâneo, criador de uma obra deslumbrante. Nem o tempo e nem o vento levaram suas ideias e pensamentos. Aleluia! Viva Kapuściński!
Eis aqui o texto em português.
“Foi enviado para lá
o melhor repórter do século vinte
Uma voz dos sem-voz
Um fanático pelo futebol
Amante da bebida
Católico, apostólico, romano
Quem sabe um enviado de Deus
Assim na terra
como no céu…”
Ryszard Kapuściński (1932-2007), repórter, historiador e escritor, nasceu em uma família humilde, em Pińsk (cidade fronteira cultural, antes parte da Polônia e hoje da Bielorússia). Morreu em janeiro passado, em Varsóvia, Polônia, deixando uma nota universal de infinita tristeza.
«Não faço distinção entre repórter, jornalista e escritor. No meu caso, os três fundem-se em um só. Escrevo sobre o que vejo. Não sou um inventor. Não falo de mundos imaginários nem tampouco do meu próprio. Descrevo o mundo real, o que está aí, tal como vi», revelava.
Ele procede de uma «estranha comunidade» e pertence, portanto, «à estirpe dos desarraigados». A Pińsk natal é o ponto de partida para sua longa peregrinação. «Quando era criança tive que ir de um lugar para outro. Durante toda a Segunda Guerra, não paramos de fugir: fosse abandonando Pińsk para entrar no lado alemão, fosse escapando dos alemães. Comecei a perambular pelo mundo aos sete anos, e ainda continuo, até hoje».
Nos últimos tempos podíamos encontrá-lo nas páginas dos diários Le Monde, El Pais, Frankfurter Allgemeine Zeitung, New York Times, na revista Time e em outras publicações.
“Em todos e em cada um dos meus textos procuro descobrir, captar e refletir o quid , a essência do acontecimento, do fenômeno ou da realidade que descrevo. Quando uma pessoa opta por descrever a realidade, sua escrita influi sobre ela. O detalhe me serve como ponto de partida para uma reflexão generalizada. A reportagem é uma forma de expressão e o jornalismo, um ato de criação», teorizou Kapuściński.
Ele era poliglota e viajou com pouca bagagem e documentado. Ia armado com um bloco de notas, caneta, câmera fotográfica; mas jamais com um gravador. «Adoro fazer fotografias (fiz muitíssimas durante a minha vida, coisa que me permitiu organizar não poucas exposições), mas nunca gravo nada numa fita cassete. Para mim, recolher dados significa acima de tudo chegar às pessoas. Para conseguir isso, sempre procuro criar situações nas quais minha presença não se note e em que meus interlocutores fiquem o mais natural possível. Por isso é tão importante o ouvido. Não só o que dizem as pessoas, mas sim como dizem», explicava.
Primeira leitura – Ryszard (Ricardo, em português) Kapuściński contou que o primeiro livro que leu na vida foi quando tinha pouco mais de 12 anos.
«Quando era criança, vivia numa aldeia perto de Varsóvia. Que faziam as crianças num lugar assim? Ordenhavam vacas. Além disso, durante a guerra ― coisa que agora poucas vezes se recorda― os poloneses tinham proibido a educação. Só quando, em 1945, mudamos para Varsóvia, fui para a escola e comecei a ler».
Ele começou a escrever como poeta. «Quando ainda estava no colégio, publiquei algumas poesias. Terminei o colégio quando tinha 16 anos, e no dia seguinte comecei a trabalhar como jornalista. Desde o primeiro momento descobri o quão fascinante é esta profissão. Acabávamos de sair da Segunda Guerra Mundial, a Europa estava destruída, muitos refugiados vagavam de um país para outro, entre a pobreza e as ruínas. Pode parecer patético, mas foi neste momento que se desenvolveu em meu ser a paixão por descrever nossa pobre existência humana”.
O primeiro par de sapatos decente que teve foi na adolescência. «Quando vejo os que vão descalços, sei o que significa não ter sapatos».
Sua paixão futebolística vinha de longe. «No colégio não me fascinava senão uma coisa: o futebol. Era goleiro do time. Depois fui goleiro do Legia, de Varsóvia, na seleção juvenil. Passava dias inteiros na grama do campo. Aquilo para mim era uma loucura, um delírio, a minha vocação mais apaixonada. Assisto futebol faz 70 anos, quando e onde posso, e, para dizer a verdade, só graças a ele existe uma TV em casa».
Kapuściński procurava viver do mesmo modo que as pessoas que apresenta em seus textos. «Existem jornalistas — eu sou um deles — que viajam e tentam viver da mesma maneira que vivem as pessoas que descrevem. Outros colegas partem para uma viagem como se fossem para uma missão diplomática».
Ele acreditava que a realidade se apresenta em muitas línguas e que a habilidade e a rotina, na hora de decifrá-las, fazem parte das normas que regem seu oficio.
«Quando vejo que não tem comida em uma panela, vêm à minha memória os tempos em que eu passava fome. Contemplo as condições espantosas em que vivem as pessoas e me lembro de minhas próprias experiências».
Prolífico – Este mestre do jornalismo estudou História na Universidade de Varsóvia. Entre os anos 1959 e 1981 trabalhou como correspondente da estatal Agência de Imprensa Polonesa. Cobriu 27 revoluções em 12 países da África, Ásia e América Latina e outras 12 guerras. Foi quatro vezes condenado a ser fuzilado.
«Os bons repórteres — não só eu acredito: a experiência e a história o avalizam — são pessoas modestas, respeitosas com o outro e capazes de demonstrar essa atitude a todo momento. Ser repórter significa, antes de qualquer coisa, respeitar o outro ser humano e sua privacidade, personalidade e escala de valores».
Ele era da opinião de que toda guerra é absurda, «salvo, se acaso, a guerra for defensiva». Constatou que viu tantas coisas terríveis que se opunham por principio aos conflitos armados.
«Na guerra nunca existe vencidos nem vencedores. Nela perdem todos. A guerra é a prova da debilidade que existe no homem e na sociedade».
Produtivo, ele é autor de 21 livros, todos deslumbrantes, que venderam mais de um milhão de exemplares e foram traduzidos para 30 idiomas, inclusive o português.
Entre suas obras destacam-se O Imperador, sobre o final do reinado do etíope Hailé Selassié; O Sha ou a desmesura do poder, que aborda a queda do regime do iraniano Reza Palevi; A guerra do futebol e outras reportagens, que disseca o conflito entre Honduras e El Salvador, cuja origem foi uma partida de futebol entre as seleções dos dois países e válida pelo mundial de 1970, no México; Ébano, reportagem sobre o continente africano que lhe deu, em 2000, o prêmio de melhor escritor do ano, na França, e o prêmio literário Viareggio, na Itália; Os cínicos não servem para este oficio, baseado em entrevistas e conversas sobre a essência da profissão de jornalista e o mundo dos meios de comunicação e os magníficos Lapidário I, II, III, IV e V, que, segundo ele, se encaixam na «poética do fragmento». Eis aqui dois fragmentos:
«Não existe pior coquetel que o da arma, a estupidez e o medo. Dele não se pode esperar senão o pior». Lapidário I
«Um rasgo característico da evolução política do intelectual latino-americano é por regra geral começar na esquerda e acabar na direita. Começa participando de uma manifestação de estudantes contra o governo e acaba em um gabinete de ministro. Em nenhuma outra parte do mundo é tão profundo o abismo que existe entre a juventude e a velhice, entre o começo e o fim de uma biografia. Que capacidade de absorção extraordinária mostram esses regimes! Que talento para amansar a oposição!» Lapidário I
Revelação – Para a crítica, leitores e o próprio autor sua obra- prima é Um dia mais com vida, o mais pessoal e literário de seus livros (mesmo que todos o sejam) e que narra a guerra em Angola. Está longe daquilo que identificamos como relato de um repórter. Trata-se quase de um diário íntimo, escrito por um ser humano no limite de suas forças físicas e mentais, consciente de sua vulnerabilidade diante da ameaça de morte que pesa sobre sua cabeça. As mesmas que pesam sobre as de tantos angolanos, soldados e civis, que protagonizam o livro.
«Assim é: escrevo sobre a guerra e sonho com a paz. Se meus livros estão inacabados é porque, entre outras razões, sempre se colocam em seu caminho as muitas revoltas africanas».
Em cada um desses livros – com uma prosa característica, em que se fundem gêneros que vão desde as formas tradicionais da reportagem, ensaio até poesia ou aforismos – Kapuściński preocupou-se particularmente em destacar a consolidação de um Terceiro Mundo independente diante das grandes potências e em analisar os meandros da globalização, tanto no terreno da política como no da cultura e dos meios de comunicação de massa.
Sempre que podia, concedia entrevistas, realizava palestras e ministrava oficinas para jornalistas na América Latina e na Europa.
O livro “Os cinco sentidos do jornalista: estar, ver, ouvir, compartilhar, pensar” é o resultado de diversas oficinas que realizou em Buenos Aires (Argentina) e Cartagena (Colômbia), e de uma palestra ministrada na Universidade Ibero-Americana do México, organizadas pela colombiana Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-americano, dirigida pelo escritor e jornalista Gabriel García Márquez. A obra foi distribuída gratuitamente em diversas universidades latino-americanas e européias. Nas oficinas, repetia frases e ensinamentos como os que se seguem:
«Para escrever uma página é necessário ler 100».
«O jornalismo está entre as profissões mais agregadas que existem, porque sem os outros não podemos fazer nada. Sem a ajuda, a participação, a opinião e o pensamento dos outros, não existimos».
«Hoje, quando o repórter chega à redação, depois de uma cobertura, seu chefe não lhe pergunta se a notícia que traz é verdadeira, senão se é interessante e se é vendável. Essa é a transformação mais profunda no mundo dos meios de comunicação: implantar uma ética por outra».
«Na ditadura funciona a censura; na democracia é mais adequada a manipulação. E o alvo dessas agressões é o mesmo: o cidadão».
Entre os diversos prêmios recebidos por ele destaca-se o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades, concedido na Espanha, em 2003, «por sua preocupação pelos setores mais desfavorecidos e por sua independência diante das pressões de toda índole que tentaram tergiversar sua mensagem», como ressaltou um jurado.
«Se se arrebata a autonomia, que missão pode cumprir um jornalista com as asas cortadas?», perguntava.
Infinita tristeza – Morreu Ryszard Kapuściński, o repórter que veio do frio. Uma voz dos sem- voz. Autor de uma obra universal; inclassificável. «Um mestre essencial para os jornalistas», titulou o diário espanhol El País.
«Um enviado de Deus», considerou o escritor inglês John Le Carré.
«Estava guiado pela compaixão, por seu amor aos povos abandonados, por um sentido de solidariedade próprio de sua ética de jornalismo. (…) Amante da bebida, entregue aos prazeres da vida, era também um incrédulo», constatou Manuel Leguineche, repórter de guerra espanhol que coincidiu com Kapuściński em múltiplos conflitos.
«Amo de verdade esse mundo, o mundo da África, da América Latina, da Ásia. Ali me sinto bem», proclamava o mestre.
«Sempre tentei (e continuo tentando) criar um novo gênero literário: alguma coisa que não fosse a típica reportagem, mas que tampouco fosse ficção. Chama- se «texto». Numa livraria de Nova York encontrei meus livros colocados em sete seções diferentes. E não me pareceu mal. Fiquei feliz em comprovar que não é fácil classificar minha escrita. É exatamente o que eu procurava: encontrar uma nova maneira de escrever. Meus esforços são dirigidos na direção de um ensaio da reportagem. A mera descrição não basta nos tempos em que vivemos, nos foi arrebatada pela câmera», explicava.
Um dia perguntaram a Kapuściński se ele se sentia católico como a maioria dos poloneses. «Evidentemente que sim. Não temos por que imitar o modelo tradicional norte-americano que sai nos filmes», encerrou.
Confissões – Assim na terra como no céu?
«Necessito experiências e impressões fortes para escrever uma reportagem», salientou.
«Gosto muito de ler aforismos, gosto desta linha clara, desse traço puro: é o que aspiro», afirmou.
«O jornalista é um caçador fortuito em todas as áreas das ciências humanas», definiu.
Aleluia! Viva Kapuściński! ●
Nota do autor: Artigo publicado em abril de 2007, na revista brasileira Imprensa, na agência de notícias Euro Latin News e no site ACPE (Associação de Correspondentes de Imprensa Estrangeira) na Espanha.