“MEU PATRIMÔNIO É O SÉCULO DO ILUMINISMO”

por Jairo Máximo

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Leo Bassi em Madri / Foto: Carmen Mato.

Leo Bassi (Nova Iorque, Estados Unidos, 1952) Ator, dramaturgo, diretor e bufão. É nômade por natureza, provocador por tradição. Descende de uma família circense e anarquista cujas origens remontam ao século XVIII. Nesta entrevista exclusiva, concedida em Madri, afirma: “Sou um homem sério, mas dentro de mim tenho um grande otimismo, inclusive quando enfrento uma tragédia”.

Abro a cortina. Fale o que você quiser.
As ameaças que recebi na Espanha não me deram medo.
Uma coisa que o bufão sempre faz é dizer a verdade na cara, seja do imperador, papa, presidente ou rei, mesmo sabendo que pode ser assassinado por isto. Tem o caráter, a força e o orgulho de manter sua independência. Sou europeu. Meu patrimônio é o século do Iluminismo e suas consequências. Creio no que faço e falo. Sou um lutador.
Quero devolver ao bufão o seu direito ancestral de dizer em voz bem alta que os demais só pensam.

070130martesVocê vive entre Rio de Janeiro e Madri. E…?
Não somente entre estas duas cidades. Tenho outras moradias, como na Itália. Não é somente um binômio; é um plurinômio. Adoro o Brasil de maneira geral, e em particular o Rio de Janeiro. Aliás, sou amigo das pessoas da igreja Positivista, que tem sua sede perto da minha casa, no bairro do Catete.

Por que neste momento você esta apresentando para o mundo o espetáculo A revelação ―em nome da razão― que critica com profundidade o monoteísmo relacionado com a condição da mulher, a sexualidade e a ecologia, oferecendo uma defesa dos valores laicos e uma homenagem ao pensamento do século do Iluminismo?
É uma reflexão. Algo pedagógico para procurar salvar esta ideia do Iluminismo ―cuja principal característica é creditar à razão a capacidade de explicar racionalmente os fenômenos naturais e sociais e a própria crença religiosa― que penso que estamos perdendo como também a paixão por defendê-la. Quis fazer um espetáculo para recordar aos jovens por que temos esta sociedade. Por que temos algo que se chama liberdade. De donde vêm tudo isto. Creio que estamos regressando às ideias religiosas, que podem ser boas para uma pessoa, mas não como sistema político e de estruturação da sociedade.

mqdefaultSeu espetáculo começa com a projeção de um vídeo de uma intervenção sua em um ato público que contou com a presença de mais oito mil evangélicos brasileiros na Cinelândia, no Rio. Qual é diferença entre o fundamentalista cristão espanhol e o fundamentalista evangélico brasileiro?
Isto é muito complicado. No próprio Brasil existe neste momento esta diferença entre o catolicismo, que era a religião que imperava no país e o evangelismo que, nos últimos anos, cresce rapidamente e não sabemos até onde pode chegar. Mas o evangelismo brasileiro é uma ramificação do americano que é uma banalização do catolicismo com raízes protestantes. Têm uma visão teológica bastante pobre. Mas vão até a gente necessita: favelas, bairros marginais, áreas rurais. Além disso, amam o dinheiro. Sabem muito bem como ganhá-lo. Quando se conhece o velho catolicismo se constata que suas raízes são mais profundas, embora hoje em dia seja ineficaz e esteja estagnado nas estruturas do passado. No Brasil, tive à oportunidade de conhecer o teólogo Leonardo Boff, expoente da Teologia de Libertação, um movimento originariamente latino-americano que uniu a defesa dos valores cristãos com a luta pelos direitos dos mais desfavorecidos. Por pregar estas ideias, Boff foi condenado, em 1985, pela Congregação para a Doutrina da Fé, por defender “opções que podem colocar em risco a fé cristã.”. Que pena que Bento 16 não tenha entendido a importância deste homem! Teria transformado a história do Brasil e de toda a América Latina.

Cruzada laica já?

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Leo Bassi em Madri / Foto: Carmen Mato.

Sim. Por exemplo, no Brasil estive em um encontro evangélico, no Rio Grande do Norte, onde tinha mais de 25 mil pessoas. Impressionante. Em um determinado momento o pastor disse: “Jesus precisa de uma nova ajuda de cada um de vocês. Precisa de dez reais. Podem lhe dar menos. Mas não se esqueçam de que Jesus pode ver tudo. Ele sabe se em sua carteira você tem dez reais ou mais». Em seguida, todos caminharam em silêncio até uma grande caçamba e depositaram suas doações em dinheiro vivo. Os pastores evangélicos são bastante eficazes nisto. Não têm nenhum problema com o dinheiro.

E quanto tem de escrúpulos?
Zero. Ainda bem que a igreja Católica não pensa assim. (risos) Quem sabe no futuro triunfe esta tendência. (risos). Vou te contar um fato real: tenho um aluno no Rio de Janeiro. O pai vive em Porto Alegre, é especialista de telecomunicação e trabalha para a empresa de celular Claro. Ele me contou que durante 15 dias seu pai esteve negociando com os evangélicos para assinar um substancioso contrato com a Igreja Universal Reino de Deus gaúcha que queria comprar 10 mil celulares para seus fiéis. Depois de muitas negociações as partes chegaram a um acordo. No dia seguinte, seu pai recebeu uma chamada no celular que dizia: ”Somos da igreja evangélica e queremos te felicitar por sua força negociadora. Foi um prazer trabalhar com o senhor. E temos uma proposta para nova compra de celulares destinados a outras 15 Igrejas evangélicas de Porto Alegre e adjacências. Queremos dar de presente para o senhor as 15 igrejas. Esses templos arrecadam mensalmente 40 mil reais. Nós, da igreja só queremos uma quantidade fixa. O resto é para você”. O pai de meu aluno recebeu a proposta como um insulto. Ele não podia imaginar que uma igreja atuasse com tanto descaramento.
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Por que você afirma que ocidente está perdendo o laicismo?
Porque comprovo que os Estados Unidos já não são mais uma república laica. Nos últimos 20 anos caiu em uma república teológica e tem esta visão religiosa do mundo. Inclusive, atualmente, os democratas têm que declarar sua religião, rezar publicamente e frequentar igrejas. Se não vai, não pode ser eleito. Há 20 ou 30 anos ninguém sabia qual era a religião de John Kennedy, Richard Nixon, Bill Clinton. Não era uma condição sine qua non.

Durante sua passagem pela península Ibérica em 2007 apresentando A revelação―em nome da razão― você sofreu uma campanha de boicote e de perseguição pessoal nunca antes vista em tempos de democracia espanhola. Em muitas cidades, suas representações foram canceladas sem contemplação porque uma página na web ultra-católica que utiliza um sistema automático de envios massivos de e-mails advertia com ameaças e pressões as instituições públicas e privadas que decidiam programar A revelação. Em Madri, você viveu uma breve temporada com proteção policial 24 horas, por ter recebido ameaças de morte pela Internet. O emblemático Teatro Alfil, onde representava sua obra, teve vigilância policial ostensiva durante toda a temporada, que durou semanas. Mesmo assim, cristãos fundamentalistas realizaram uma manifestação em frente ao teatro. Denunciavam “provocação”. Pediam “respeito à Igreja e a Deus”. Também diversos meios de comunicação ―rádios, TV, jornais― lhe censuraram. O que isso significa para você?
Muito e pouco. O pouco é que existem alguns grupinhos fanáticos que há tempo estão contra mim. Até colocaram uma bomba ao lado do meu camarim, em 2006. São uns desequilibrados mentais. Por isso necessitamos da polícia. Só um destes loucos, com uma barra de ferro, pode nos fazer bastante estrago. O muito é que estes loucos não vão ao teatro. Vivem no seu mundo. Foram organizados por pessoas que não dão a cara. O cardeal Cañizares, vice-presidente da Conferência Episcopal e arcebispo da cidade de Toledo ―coração do cristianismo e de todos os movimentos nacionalistas e fascistas da Espanha― fez uma homilia que dizia assim: “Leo Bassi é o símbolo da decadência dos valores. Seu espetáculo é um atentado à liberdade religiosa“. Sendo assim, considero que o responsável por incitar essa gente é o cardeal aliado a um pequeno grupo de intelectuais que escrevem nos diários espanhóis ABC e La Razón.

Como um bufão vive em Madri com guarda-costas 24 horas?Utopia
Tive proteção policial durante alguns dias. Já não tenho mais, embora tome minhas precauções. Já estou acostumado a este tipo de situações. Intuo que os peixes gordos viram que isto estava chegando longe demais e deram uma contraordem para não me tocarem. Estava me dando muita publicidade gratuita.

Qual é a moral da história?
Que o governo do Partido Socialista Operário Espanhol ordenou uma proteção especial. Mandou um sinal de apoio: Neste aqui ninguém toca. Os outros entenderam a mensagem.

O que é leobassipuntocom?
Um bufão com Internet. Algo novo na minha vida. A Internet é fantástica para os bufões. É uma arma ou um meio para conectar ideias, procurar aliados e quebrar o monopólio da informação. A minha primeira briga é com diário espanhol El Mundo, por manipular notícias e difundir falsa informação. Fiz um estudo que está no meu site sobre os artigos do britânico Gordon Thomas, publicados por este diário, que o apresenta como um especialista em terrorismo. Constatei que as suas denúncias não se encontram em nenhum outro lugar. São inventadas. Uma coisa interessante de tudo isto é que com o julgamento do 11-M (atentado terrorista contra trens na Espanha que matou 191 pessoas e deixou cerca de 1.550 feridos) parte dos argumentos do direitista Partido Popular e de seus meios de comunicação, sobre a teoria da conspiração (uma suposta conexão entre etarras e islamistas) vem dos artigos de Thomas. Inclusive nos debates parlamentares, muitos populares o citam como fonte de informação.

9788495764607Acabas de lançar na Espanha o livro com o texto de A revelação ―em nome da razão―, que em breve será traduzido para o português. Por que o livro?
Este documento para mim é importante porque desde estreia deste espetáculo, mais de 150 mil pessoas já o assistiram. Teve lugares em que fiz espetáculo para mais de cinco mil pessoas. No norte da Espanha, cheguei a fazer durante muitas noites, apresentação para 1.440 pessoas em cada sessão.

Por que A Revelação para os brasileiros?
Porque considero que esta mensagem é importante para o Brasil.

Por que você é bufão?
Aqui existem duas coisas e quero que fiquem claras: a primeira é que me impuseram ser bufão. Descendo de uma família circense anarquista, e cresci com a ideia de que tinha que seguir esta tradição. Aquela coisa de filho/neto/pai de açougueiro. Eu mesmo ―como jovem inquieto― me rebelei contra esta tradição. Durante alguns anos não queria saber de espetáculo. Olhava-os como uma coisa que não era minha, era da família. Mas chegou um momento, buscando minha identidade, que comecei a pensar nesta tradição e a analisar qual era a função da minha família, dos bufões, dos palhaços, da importância do riso e passei a gostar desta história. Quem sabe foi aí que entrou o genético. O meu pai é um homem divertidíssimo. Constantemente está inventando e contando piadas. Aos 80 anos tem um otimismo, uma fé no futuro surpreendente. Fisicamente é um velhinho, mas mentalmente é um homem lúcido. E penso que tenho isto dentro de mim. Eu sou um homem sério, mas dentro de mim tenho um grande otimismo, inclusive quando enfrento uma tragédia. Ela não me afeta. Tenho certeza que depois de uma tragédia as coisas podem melhorar. Para afrontar a tragédia qual melhor arma que o humor e a comicidade.

Seu teatro é provocativo?
A provocação é uma ferramenta que utilizo para incitar o público. Penso que a maioria das pessoas é apática. E a provocação é uma coisa que desperta a consciência, pois o público a enfrenta. Muitos podem não gostar, e inclusive se assustar, mas todos têm que reagir.

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Leo Bassi em Madri / Foto: Jairo Máximo.

Fecho a cortina. Haverá ovação?
Temos esquecido que a grande revolução do Iluminismo não é só o racional. É também o sensual, o sexual e os prazeres.
Preciso criar um novo espetáculo para chegar a algo mais. Estes desejos me chegam por meio do público, sem usar a palavra. ●

● Esta entrevista faz parte do projeto do livro A Tumba Aberta e foi publicada na revista El Siglo de Europa, no site da Associação de Correspondentes de Imprensa Estrangeira na Espanha (Acpe) e na agência Eurolatinnews em maio de 2007.

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Leo Bassi na revista espanhola El Siglo de Europa em maio de 2007.

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